Erro de Medicação: O Silêncio que Mata nas Farmácias e Hospitais

Erro de Medicação: O Silêncio que Mata nas Farmácias e Hospitais

Sumário

Por que ainda erramos tanto na administração de medicamentos — e como o farmacêutico pode salvar vidas todos os dias

Você já ouviu falar de um engenheiro que errou um cálculo e derrubou uma ponte? Ou de um piloto que, ao cometer uma falha, teve sua voz analisada em uma caixa-preta por uma comissão internacional? Esses erros, quando ocorrem, ganham os noticiários, geram investigações, políticas de prevenção e aprendizado institucional. Mas e os erros na área da saúde? Quem escuta as “caixas-pretas” das medicações administradas em dose errada ou do nome trocado no plantão noturno? Quantos desses erros chegam a ser revelados?

A verdade é que os erros de medicação seguem ocorrendo, todos os dias, nos corredores de hospitais, clínicas, ambulatórios e farmácias. E na maioria das vezes, são silenciados, escondidos atrás de protocolos não aplicados, sobrecarga de trabalho, medo de punição e um sistema que ainda privilegia o apontamento de culpados em vez de soluções coletivas.

O que é considerado erro de medicação?

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define erro de medicação como qualquer evento evitável que possa levar ao uso inadequado de medicamentos ou causar danos ao paciente. Esses erros podem acontecer em diferentes etapas: desde a prescrição médica, passando pela dispensação na farmácia, pela administração pelo profissional de enfermagem, até o monitoramento que deveria identificar efeitos adversos ou interações perigosas.

No Brasil, tivemos casos emblemáticos que escancararam a gravidade desse problema. Em 2021, uma bebê de dois meses morreu após receber uma dose intravenosa de leite na veia, em vez de na sonda enteral, dentro de um hospital em Sorocaba. O caso repercutiu nacionalmente, mostrando como falhas simples – como a ausência de rotulagem adequada ou protocolos de checagem – podem ter consequências fatais. Outro exemplo marcante ocorreu no Rio de Janeiro, quando uma criança internada por um quadro respiratório leve recebeu um medicamento errado e sofreu uma parada cardiorrespiratória. A medicação não era indicada para a faixa etária da criança e, posteriormente, descobriu-se que o erro ocorreu na etapa de dispensação.

Segundo dados da ANVISA, os erros relacionados a medicamentos estão entre os eventos adversos mais notificados no país, representando uma ameaça constante à segurança do paciente. Contudo, especialistas estimam que a maioria dos erros não é reportada – não por má-fé, mas por medo. Existe uma cultura punitiva que ainda ronda os ambientes de saúde, dificultando que os profissionais relatem suas falhas e que as instituições aprendam com elas.

A conta global dos erros evitáveis

Enquanto isso, a OMS estima que os danos causados por erros de medicação custem mais de 42 bilhões de dólares por ano ao sistema global de saúde. Por isso, lançou em 2017 o desafio “Medication Without Harm”, com o objetivo de reduzir pela metade os danos evitáveis causados por medicações até 2030.

Mas por que, afinal, esses erros acontecem? A explicação é multifatorial. Em parte, somos humanos – e humanos erram. Mas o problema é mais profundo: sistemas mal desenhados, prontuários eletrônicos confusos, falhas de comunicação entre médicos, farmacêuticos e enfermeiros, além de turnos exaustivos e falta de capacitação contínua, são ingredientes constantes nesse cenário. Em muitos hospitais, o farmacêutico sequer tem acesso à prescrição médica, o que o impede de exercer sua função crítica de barreira contra erros. E, quando tem, muitas vezes encontra resistência ou desvalorização de seu parecer técnico.

É nesse ponto que precisamos de uma virada de cultura. Assim como a aviação evoluiu após cada acidente, tornando-se um dos meios de transporte mais seguros do mundo, a área da saúde precisa reconhecer que errar é humano, mas repetir o erro é estrutural. E só se muda a estrutura quando se enfrenta o problema de frente.

O farmacêutico como barreira contra o erro

O farmacêutico tem um papel essencial nesse processo. Ele pode – e deve – revisar prescrições, identificar interações, verificar doses, avaliar duplicidades e orientar pacientes e equipes sobre o uso seguro de medicamentos. Em instituições onde há integração do farmacêutico na equipe multiprofissional, os índices de erro de medicação caem drasticamente. A conciliação medicamentosa, por exemplo, reduz eventos adversos nas transições de cuidado, como admissões e altas hospitalares, onde muitos erros passam despercebidos.

Para mudar o cenário, é urgente implantar medidas concretas: prescrição eletrônica segura, dupla checagem na administração de medicamentos, programas de capacitação, cultura de notificação sem punição, revisão de processos com foco em prevenção – e, acima de tudo, escuta ativa dos profissionais da linha de frente.

De quem foi o erro? Essa não é a pergunta certa.

No fim, a pergunta “de quem foi o erro?” precisa ser substituída por “como podemos impedir que aconteça de novo?”. Porque, enquanto na engenharia um erro pode deixar destroços no chão, na saúde ele pode ser enterrado sem vestígios. E é justamente esse silêncio que mais grita.


Referências:

  • WORLD HEALTH ORGANIZATION. Medication Without Harm – Global Patient Safety Challenge. Geneva: WHO, 2017.
  • AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Relatório de eventos adversos relacionados a medicamentos. Brasília: ANVISA, 2023.
  • G1. “Bebê morre após receber leite por via intravenosa em hospital de Sorocaba”. [Online] 2021.
  • O Globo. “Criança recebe medicação errada e sofre parada cardíaca em hospital público do Rio”. [Online] 2019.